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Retrato de Infância

"Essa é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações a vida real terá sido mera coincidência."



Éramos pequenos quando papai decidiu que não viveria ao lado de alguém que não amava. Na manhã de sexta-feira, depois de esvaziar parte das gavetas e macetar as roupas numa mochila velha, despedimos dele sem entender bem o que estava acontecendo. Permanecemos na calçada até o momento em que o vimos dobrar e esquina, ele não olhou para trás.
Às vezes eu acompanhava mamãe até o orelhão do bairro, antes ela passava na mercearia e pedia um maço de cigarros e três fichas. As palavras ao telefone eram sempre duras e cheias de rancor e ao final de tudo, ela tocava meu ombro e forçava um sorriso de “está tudo bem”.
Mamãe levantava bem cedinho, ajeitava o embornal nos ombros e apressava-se para não perder a condução. Ela trabalhava nas lavouras de café. Passávamos a maior parte do dia brincando de fazer bolinhos de terra na rua sem calçamento. Quando cansávamos de exercitar os dotes culinários infantis, fazíamos torneios de bete. Mamãe sempre nos orientava a não perdermos aula, afinal, as faltas aguçavam as bruxas do conselho tutelar. Então o medo nos fazia abandonar toda a diversão e correr para o grupo escolar.
Hoje mamãe não está mais aqui e de papai tenho vagas lembranças, bem anteriores àquela sexta-feira. Nossos brinquedos foram substituídos por máquinas e planilhas e a rua de terra, coberta por um belíssimo tapete preto. Não tenho nenhuma fotografia daquele tempo, mamãe odiava fotos. Seu corpo magro e o sorriso de poucos dentes eram seus álibis. Apesar disso, ela nunca nos negou o essencial, e nos ensinou a sobreviver num mundo cruel, em que as pessoas inocentam suas falhas com a palavra amor...

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