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Tragédia

"Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência."




Na rua de cima havia um homem sentado em sua velha cadeira de madeira. Todas as tardes lá estava ele na calçada a observar as pessoas que passavam apresadas de volta para casa depois do trabalho. Tirava o canivete preso ao cinto de couro legitimo, herança de família e cortava o fumo ainda em rolo, para em seguida deposita-lo numa folha já seca de palha. Era seu ritual de todas as tardes: Apenas um cigarro, que tinha o prazer de preparar como se fosse o ultimo de sua vida.
Ao cair da noite e as luzes dos postes começarem a acender, ele recolhia sua cadeira e entrava em casa, logo apos fechar os portões. Já não era mais alguém e sim parte da paisagem da rua. Sempre disposto a oferecer um boa tarde com a gentileza que quase não se vê hoje em dia.
Me lembro perfeitamente do ultimo dia que o vi, ele não soltava mais a fumaça costumeira, nem cortava mais o fumo e enrolava o conteúdo na palha seca. Sua velha cadeira estava do lado de fora da casa, podia ser vista entre as grades do portão de lata verde escuro encostada do lado esquerdo da porta que se abria para a sala.
As janelas todas fechadas, e um grande cadeado lacrava a entrada, coisa que nunca se vira antes. Senti falta do "boa tarde" costumeiro, mas segui caminho até chegar em casa e atirar minha bolsa no sofá em seguida abrindo as mensagens do dia e também as redes sociais afim de não perder as novidades. Até que o vi numa das fotos nas páginas de amigos, sendo amplamente compartilhada por vizinhos e até mesmo familiares.
Quisera eu que a noticia fosse das melhores, que nosso velho desconhecido amigo, tivesse sido contemplado com uma bolada na loteria, ou algo do tipo, mas quando li a legenda inferior a imagem, uma lágrima escapou dos meus olhos e levou-me a refletir sobre a fragilidade humana e a limitação do tempo que dispomos com aqueles que fazem parte do nosso cotidiano.
Fez saber-se, de alguma forma, que dispunha de grande quantia em dinheiro reservada em casa, coisa de gente ressabiada, que não confia em bancos para guardar o pouco que tem, mas que mesmo sendo pouco atiça o olhar de quem nada tem a perder. Teve ele na madrugada a casa invadida por 3 assaltantes que depois de o açoitarem e torturarem com requintes de crueldade, afim de revelar onde guardava o dinheiro, proferiram sobre ele inúmeros golpes de facas que o levaram a perder a vida sem nenhum socorro, sendo encontrado morto pela filha na manhã.
Quem eram os assassinos? Três jovens usuários de entorpecentes, que submetidos a abstinência da substancia nociva, tiveram a coragem de tentar contra a vida de um inocente afim de obter o necessário para acalmar o vicio que corria nas veias.
Não ousei ver quem eram no momento, meu coração se encheu de tristeza com a lembrança do pobre homem que certamente esperava mais da vida que uma morte cruel. E cuja família que certamente esperava mais da justiça que 10 anos de cadeia.
Os dias correram depressa e os 10 anos se reverteram em 3 devido ao bom comportamento que tiveram com o tempo. Numa manhã de domingo a caminho da igreja, vi saber por uma amiga que um dos jovens envolvidos no incidente estava do outro lado da rua.
Lá estava ele na companhia de outros 4 jovens, com uma vara de pescar e uma mochila nas costas, passaria talvez o dia as margens de um riacho, numa pescaria descontraída com os amigos. Segui meu caminho e fiz uma breve reflexão sobre quem somos e pra onde vamos. Ao chegar no meu destino lembrei-me do pobre homem que fora esquecido com o tempo. Teve a casa demolida e no lugar foi construído um grande prédio. Sua história foi apenas uma entre a tantas. Tantas outras tragédias que acontecem diariamente nesse país.

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