Pular para o conteúdo principal

Partículas

"Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.”


Dedico este conto a alguém que não conheço o bastante, mas reconheço os segredos que a envolvem-na e tiram-lhe o sono. Recuso-me a decifrar sua primeira letra, temo ter sua identidade revelada. Que essa seja uma incógnita entre nós.  






Passos cansados arrastavam pelo corredor que havia se adaptado ao modo de vida da recente moradora. Frente a porta, meteu a mão na bolsa tiracolo caramelo que trazia consigo. "Onde está você..." Murmurava enquanto deslizava os dedos no emaranhado de coisas que só bolsas femininas são capazes de conter. Enfim as encontrou. Ergueu pois o chaveiro, presente de uma ex amiga, e por um milésimo de segundo permitiu sentir saudades, inseriu as chaves na abertura e girou-a, dando pequenos solavancos. Já tinha se acostumado com as manias da nova habitação. "Preciso arrumar isso." 
Fechou a porta atras de si, e caminhou para o quarto na penumbra da casa. Sentou-se sobre a cama e reclinou o corpo pousando sobre o Edredom cheirando a "Comfort Lavanda", cheiro tão familiar que expunha-lhe a lembranças de casa, dos irmãos, dos amigos, da família que deixou para trás ao aceitar o desafio profissional que lhe fora proposto. 
Fechou os olhos e permaneceu assim por alguns instantes, pensando no exaustivo dia que tivera. Quantas cobranças, quantas preocupações, quanta responsabilidade... Considerava-se uma mulher forte, visto que já havia passado por muitos reveses na vida, mas como em cada um deles, nunca se sabe qual o limite de tudo. Até onde pode suportar a cobrança, as metas, os resultados. Inspirou profundamente e ergueu o corpo sentando-se afim de retirar os calçados e depois as meias. 
Pousou os pés sobre o tapete de choche, confeccionado há alguns anos atrás, esticou os dedos sobre ele sentindo as linhas grossas entrelaçadas na sola macia moída pelo excessivo uso dos sapatos. Olhou os seus pés, dois pares brancos com unhas pintadas de vermelho sangue. Necessitavam de um banho de sol. 
"19:39" marcava o relógio digital sobre o criado mudo, anexo a cama de casal. "Lembranças, mais lembranças..."
O criado não falaria dos segredos que tinha presenciado em lugares diferentes daquele, mas a recordava do que tinha acontecido. 
Despiu-se e foi para o banheiro, ligou o registro permitindo que os primeiros jatos de água caíssem, até que a temperatura estivesse do seu agrado. 
Deslocou-se e deixou a água quente cair sobre suas costas causando uma sensação de alivio. Com a esponja natural esfregou o corpo fazendo uma espuma branca que escorria pelo ralo. A solidão era sua companheira naqueles dias. Terminando o banho enrolou-se no roupão de micro fibra que estava a sua espera e foi para o quarto novamente. 
Costuma ligar a teve, não se dava bem com o silêncio. 

"Por que não uma taça de vinho?" 

A teve anunciava coisas que não lhe faziam o menor sentido, seus pensamentos estavam em lugares distantes incansáveis. Degustava o vinho que descia pelo garganta como um veludo, pôs a taça sobre o velho criado. Lembrou-se então da velha amiga, que distante se encontrava. Quantos momentos prazerosos passaram juntas, quantas viagens, restaurantes, passeios. 
A boca pequena, a aparente falha causada pelo espaço entre os dentes denunciados no sorriso tímido que a encantava e uma pequena imperfeição do lado direito da face proveniente de um acidente de infância. Cada detalhe de seu rosto estava presente em sua mente. Suas mãos macias, seios pequenos, a pequena cicatriz da cesária logo abaixo do umbigo, o quadril estreito "Ahh... lembranças." Tratou logo de tomar mais gole da bebida como se ela pudesse expurgar a nostalgia. 
Era inevitável a sua falta, mas fizera uma escolha e a deixará para trás, num passado distante. Agora, oque tinha dela eram apenas partículas, lembranças dos bons momentos que passaram juntas.
Veio a mente a viagem a Campos de Jordão, o hotel dispunha de uma piscina aquecida, onde numa noite escura e fria desfrutaram uma aventura aquática cheia de prazer e pecado. 
Afastou de si as lembranças desligando a teve e conferindo o telefone com notificações das mensagens que tinha recebido. Apagará a tempos o contato dela. Decidiu dar um fim ao romance proibido, incompreendido pela sociedade. 
Apagou as luzes, fechou os olhos, e o véu da noite a envolveu-a num sono profundo, sem sonhos, sem recordações. 

Comentários