"Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência."
Envolta na melancólica existência a se chamar de vida, tomava o dejejum a pensar oque seria aquele dia. Triturando o pão já endurecido, empoeirava com as migalhas a veste azul marinha, desbotada por constantes lavagens e exposições ao sol. Ansiava mais que a rotina mecânica sem nenhuma atribuição intelectual. Com os olhos fixos em lugar nenhum, inquiria-se sobre oque há por trás da cortina da morte, quem sabe uma breve pausa para o caminho enfadonho e sem perspectiva que operava.
Com a saúde razoavelmente boa, na faixa etária dos 30, não veria bater em sua porta a não ser que fosse convidada. Tomou o copo quente de café, quase que amargo e o fez descer pela garganta de uma vez só. Chacoalhou as migalhas e partiu para o local de trabalho, sem despedidas.
A felicidade alheia era um aguilhão para a alma enfraquecida. Inclinou-se sobre a mesa a observar o que dispunha. Os instrumentos que a auxiliavam durante a jornada. Iniciou a dança lépida com as mãos, que rendiam-lhe a produtividade exigida, mais nunca suficiente.
Uma nuvem cinza pousou sobre si, embaçando a visão tornando os movimentos que deviam ser hábeis cada vez mais lentos, como se uma música morosa tivesse substituído as batidas constantes do tambor acelerado. Trouxe consigo pensamentos desconexos, intensos, medonhos e até assombrosos. Procurou oculta-los dentro de si, entretanto eram como uma cachoeira a preencher um copo raso e estava a transbordar.
O socorro que buscava não podia ser alcançado com a piedade alheia, nem tão pouco com a injetável hospitalar que adormecia a alma e cauterizava a mente. Horas depois de uma profunda reflexão em parceira com o teatro mecânico produtivo, fez-se ouvir o anuncio do final da tarefa diária. Partiria para o lugar onde deveria ser um lar, mas novas guerras seriam travadas, levando-a a instigar a partida eterna.
Foram horas intermináveis de discussões que envolviam um passado, o presente, e um futuro que dispensava ter. Não se ouviu resposta para os lamentos, seus ouvidos acatavam palavras inflexíveis e plantando-as no coração. Caminhou pelo quarteirão a observar um grupo de crianças brincando despreocupadas, sem entender o que lhes reservava a vida adulta, que era quem sabe incerta. Sentou-se no passadiço amparando a cabeça baixa com as mãos em busca de soluções para os constantes problemas. Derramou um planto sonoro que molhou o asfalto e despertou a atenção das crianças, trataram de brincar em lugar mais distanciado ao que estava.
Voltou para casa com os olhos inchados, vermelhos, a cabeça pulsante numa dor intensa. Abriu a gaveta a procura de analgésicos que engoliu-os a seco partindo em seguida para o banho.
Banho rápido, com o pijama a espera. Não precisava mais nada naquele inicio de noite, somente um profundo sono que a faria esquecer as dores da alma.
Tomou dois remédios para dormir, fez-los descer com água, mas a dor e a ansiedade de se ver livre daquele dia eram maiores que a espera, tomou mais dois, e depois mais dois. Meteu o restante da cartela na gaveta de peças intimas e deitou-se no leito sem travesseiro. Não demorou a sentir os primeiros sinais do efeito arrebatador, olhou para o teto branco tentando manter os olhos abertos enquanto os sons pareciam desaparecer. Fora envolvida por uma musica lenta, uma mancha sedosa que a fazia distanciar-se da realidade.
Estava num salão magnifico, trajada com um vestido que jamais teria o suficiente para comprar, acompanhada de ilustre cavalheiro que a conduzia pelo salão ao som de uma valsa magnifica que a fazia recordar os sonhos da festa de 15 anos que nunca tivera. A musica parecia não ter fim e perdurou até o momento em que abriu os olhos já em lugar incomum, com um cano metido nas narinas atravessando a garganta. Luzes acesas e uma figura de branco ao lado da cama. Não era um anjo, não haviam asas, somente um jaleco e uma bandeja e inox com uma bacia contendo uma siringa de liquido preto que fora inserido na ponta do tubo.
_Vai ficar tudo bem.
Disse a voz feminina.
Não disse nada, tornou a fechar os olhos e embrenhar-se numa noite sem sonhos.
***
Alguns dias apos o incidente, numa manhã chuvosa, triturando outro pão enrijecido pelo tempo, tornou a lembrar-se da dança, fechou os olhos e balançou o corpo seguindo o movimento da saudosa valsa que guardara na lembranças. Seria aquele um belo desenho para a morte. Uma dança eterna, sem cansaço, sem preocupações com o depois. Quem sabe um dia tornaria a ultrapassar os portões da vida. Afinal eles estavam ali na gaveta a sua espera, a 6 comprimidos de distância.
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